sexta-feira, 15 de junho de 2012

Voyeurismos de 1x2,30m

  Sou terrível.
  Começo o meu turno a medo. Medo do tempo psicológico. Esse sacana! Vem de 10 em 10 minutos, entre dentes, lembrar-me que falta menos que há pouco mas sempre mais do que espero.  E entre gentes que entram e saem, procuro, sem cessar, algo que me distraia.
  E é então que me sinto terrível.
  A porta fica aberta todo o dia. Tem cerca de 1 metro por 2,30. Permite ver uma pequena porção do jardim do Príncipe Real, um banco no passeio e uma passadeira. Convida a muito mais e eu cedo.
  É frequente ver o João Botelho a subir e a descer a rua, carregando papéis debaixo do braço e com o seu ar atarefado. Passa um ou outro actor género a neverending story "Bananas Fora de Prazo", um ou outro ministro e uma boa dose de ilustres desconhecidos. Muitos carros, aliás, demasiados...Enfim. Mas curioso, curioso, é o banco.
  Sou mesmo terrível.
  O único banco para o qual me é consentido olhar, é palco de tragédias colossais e de amenas cavaqueiras.   E eu...eu papo tudo. Sou um monstro, um fingidor e, sofro! Finjo tão completamente, que chego a fingir que é dor, a dor que deveras sinto.
   
O casal de pessoas menos novas que lá se senta regularmente, intriga-me! Permanecem na mesma posição durante horas. Não olham um para o outro. Olham para os lados, sempre para os lados e a frente também é um lado quando não se quer cruzar olhares.  
   Estarão fartos um do outro? Há quantos anos partilharão a mesma cama? Será que se casaram por amor ou conveniência? São tantas as perguntas e, de repente, sou um deles e levo a dor para cova.
   Há dias em que o banco está vago e vai sendo ponto de paragens aleatórias. São maioritariamente os jovens de uma faculdade da zona que o roubam por minutos. Fumam o seu cigarro, maioritariamente cravado. Proferem a sua reclamação, maioritariamente para com professores. Riem, desdenham, provocam e, maioritariamente, namoram. Mas se houve paragem aleatória que me tocou, foi a de duas raparigas.
   Há uns dias olhava eu para o banco como quem olha para o nada. Não assimilava qualquer tipo de informação. Encontrava-me submergida em pensamentos triviais, quando algo de relevante me pesca e me põe os pés no chão. Uma rapariga com vinte e poucos, senta-se de rompante, larga a mochila, leva as mãos à cara. Alguns segundos depois surge uma outra rapariga que se senta. A sua linguagem corporal é mais relaxada. Volto a direccionar o meu olhar para a que chora. Sim, já chora. Começo por pensar que se lamenta da vida. Insucesso escolar, família, doença...Começa a enumerar qualquer coisa. Agarra na cara da mais relaxada. Apercebo-me minutos mais tarde que "mais relaxada" quer no fundo dizer "estou-me a cagar". Entre lágrimas e suspiros, são os revirar de olhos que me chateiam. É como ver uma criança sozinha a atravessar em slow motion a rotunda do Marquês, e não fazer nada! Há tanto de não quero saber como de vou morrer se me deixares. "Do you have sardines in another color?" Chega um cliente. São namoradas. Eram. Fico de coração partido.
  São os que se sentam sozinhos, a ler, os que se sentam só, e só, se sentem confortáveis. Os que apenas observam qualquer coisa já fora do meu alcance de visão, ou quem sabe, também do deles. Os que ouvem música e marcam o ritmo com as mãos enquanto esperam por ela, por ele, por daqui a bocado, pelo tempo que passa rápido quando queremos e devagar quando é penoso. Quando nos tenta romper uma cicatriz já fechada. Quando nos lembra, enquanto vivemos a vida de outros, que ainda temos auto-curativos a fazer. Pelo tempo que também eu espero, noutro banco, do outro lado da rua, naquela loja pequenina que não dá muito nas vistas.
Acho que afinal não sou assim tão terrível. O penso é que só tapou a ferida, que teima em não fechar. E eu que não sei porquê...Vou-lhe meter um banco em cima. Pode ser que estaque.